A origem do “ouro líquido” pelas mão de um mestre lagareiro
É quase a chegar ao fim da povoação de Ortiga, no concelho de Mação, que encontramos um dos últimos lagares tradicionais do país. O silêncio que atravessa a aldeia contrasta com o ruído ininterrupto que vem da Rua da Estação. Salta à vista um edifício de paredes caiadas e portões altos. Ao aproximarmo-nos, avistamos ao longe Carlos Filipe, o mestre lagareiro. Até chegar ao seu encontro, passamos pelo lavadouro, onde “a azeitona toma banho” e são retirados os restos de folhas, paus e pedras, para depois ser pesada e armazenada.
“Recebemos na ordem das cinco toneladas de azeitona diárias, mas houve alturas em que se chegou a receber 20 ou 30, dependendo do ano de colheita”, explica Carlos Filipe ao Conta Lá, com a expectativa de, nesta campanha, conseguir ultrapassar neste lagar as 100 toneladas de azeitona recebida.
Engenheiro mecânico de profissão, herdou o gosto do ofício pelas mãos do pai, mestre lagareiro uma vida inteira mas com o qual lamenta não ter tido oportunidade de trabalhar. Hoje, Carlos Filipe é o responsável pela produção de azeite na Cooperativa Agrícola dos Olivicultores de Ortiga, que conta com cerca de 200 sócios.
“A minha formação em lagares de azeite é da prática, não é de teoria. Comecei nisto com 14 anos, corri o país todo em lagares e aos 30 vim para este. Antes de ser engenheiro, foi aqui que comecei”, sublinha.
Com um percurso profissional dedicado à área da programação de máquinas, é no contraste do trabalho manual que Carlos Filipe encontra o seu refúgio, movido pela vontade de manter vivas as técnicas de antigamente. “Segundo este método, devemos ser dos últimos, senão o último lagar. Nós fazemos azeite decantado naturalmente”, admite, com orgulho na voz.
Enquanto a conversa se desenrola, entramos por uma estreita porta verde e somos impactados pelo cheiro intenso a azeite e um sopro de ar húmido e quente, ambiente ideal para manter intacta a qualidade de todo o processo que aqui acontece. Há azeitona à espera de seguir o seu caminho e quanto menos tempo esperar, melhor.
"A azeitona, depois de limpa, é armazenada nestes reservatórios, os pegões, o mínimo de tempo possível porque a qualidade do azeite depende principalmente da qualidade fitossanitária com que entra. Se o olivicultor apanhar a azeitona e a trouxer nas próximas 24 horas e nós a moermos nas próximas 24, e se tiver uma qualidade fitossanitária boa, temos um azeite de excelência", explica Carlos Filipe.
Com a força dos braços, abre uma pequena porta de ferro que permite à azeitona sair dos pegões e entrar no moinho de galgas, conhecido também por pio. Com duas rodas de granito de perto de 2000 quilos cada que pisam a azeitona de forma contínua, aqui acontece a fase da moenda, que dá origem depois a uma massa escura.
“95% do azeite está na polpa, 5% está no caroço, e o objetivo da moenda é esmagar a azeitona para ter acesso às microgotinhas que tem lá dentro”, elucida Carlos Filipe.

À espera de receber a massa da azeitona está Glória, esposa de Carlos, que se juntou, tal como uma das filhas do casal, para dar uma ajuda na empreitada. Nesta fase, enchem-se as seiras, também conhecidas por capachos. Com o aspeto de um círculo plano e feitos de materiais como serapilheira, esparto ou junco, é pela “boca da seira” que se faz o enseirar da massa. Quando necessário, junta-se nesta fase água quente que “nunca pode exceder os 30 graus”.
“O aquecimento é muito importante para termos um azeite de excelência. O objetivo é juntar as micropartículas, partir primeiro a membrana que está à volta das gotículas e juntá-las”, detalha.
Procede-se ao empilhamento das seiras para levar à prensa, onde a massa é novamente esmagada e se dá o início formal à extração daquilo que virá a ser o ouro líquido. Cada prensa leva, em média, 30 seiras.
Quando o líquido que escorre para as tarefas (os tanques de barro ou inox onde fica a repousar) é praticamente nulo, é tempo de limpar as seiras, aproveitando-se o que restou da moenga: o bagaço de azeitona, normalmente transformado em óleos que vão servir para fins tão diversos, da culinária a cosméticos.
Nos tanques, começa a notar-se uma mistura de água russa com azeite e ganham vida as expressões da sabedoria popular que ensinam que “água e azeite não se misturam” e que “o azeite vem sempre ao cimo”.
“O azeite fica ali 48 horas a decantar, de forma natural. Primeiro, começa a vir ao cimo, fica mais limpo de água, muda-se para outra tarefa e descansa. Depois, armazenamos nos depósitos [com cerca de 4 mil litros cada] e é aí que faz a decantação final. Como o azeite é decantado naturalmente, precisa de muito tempo para purificar e quanto mais tempo estiver a purificar melhor, menos borras leva”, detalha Carlos Filipe.

Neste lagar, à semelhança dos restantes à moda antiga, não entram conceitos de azeite virgem ou extra-virgem, nem de sabores cítricos ou quaisquer outras variantes. Fala-se apenas em “azeite puro”. Mas se dúvidas restarem sobre a qualidade de um bom azeite, o mestre lagareiro diz que há uma prova dos nove para testar o produto final: “Para testar se o azeite é um bom azeite, não basta só provar. O teste do frigorífico é o melhor teste que existe porque o azeite solidifica muito rápido no frigorífico e o óleo não, não congela. Se colocar um pouco de azeite num copo e não solidificar no frigorífico é porque não é azeite”, explica.
Mas se a qualidade do produto importa, o preço também. E não só para o consumidor. Com o surgimento de lagares modernos e o menor custo de produção associado, torna-se inevitável fazer contas à vida e ao futuro dos lagares à moda antiga.
“Este ano, o custo da moenda (por quilo) andará nos 17, 18 cêntimos, já o ano passado foi nessa ordem. Isto aqui é um lagar tradicional em que o método de produção exige muita mão-de-obra, o que vai aumentar os custos. E não podemos comparar com um lagar que trabalhe com tecnologia moderna, desse ponto de vista o custo aqui é sempre elevado”, explica Carlos Filipe, que lembra ainda que “a qualidade de um azeite tradicional também tem peso”, embora “isso no nosso país não seja valorizado. Há países que sim, valorizam muito os azeites feitos pela metodologia tradicional, cá não”.

Em causa está o futuro de um azeite único, mas também uma tradição de gerações. “Os métodos tradicionais cada vez mais estão a cair em desuso, em função de não haver mão de obra", considera.
Perante esta dificuldade, Carlos Filipe admite que apenas tem continuado a carregar o título de mestre lagareiro pela insistência dos sócios que querem continuar a ver o lagar de portas abertas. Mas ao refletir nos tempos difíceis e na pouca valorização da arte, aos 61 anos e com “uma vida inteira dedicada” aos lagares, confessa ao Conta Lá que esta foi a moenda final: “Este é o último ano, para o ano vou largar isto”, anuncia.