Quase todo o interior em risco de ficar sem jornais: autarcas falam em “retrocesso inaceitável”
A partir de janeiro, oito distritos do país, a maioria no Interior, podem ficar sem acesso diário aos jornais. O cenário antecipa-se após a Vasp anunciar a interrupção de entrega dos periódicos, acusando dificuldades operacionais e inação do Governo. O anúncio já está a gerar preocupação entre autarcas que falam em “retrocesso inaceitável” e “uma machadada na democracia”.
A Vasp anunciou esta quinta-feira que oito distritos do país poderão ficar sem acesso regular a periódicos diariamente. São estes Beja, Évora, Portalegre, Castelo Branco, Guarda, Viseu, Vila Real e Bragança. A empresa justifica a decisão com a queda das vendas e o aumento dos custos operacionais, que tornaram as rotas “insustentáveis”.
Por meio de um comunicado, a empresa recorda que “foi amplamente sinalizada a necessidade de uma decisão estrutural por parte dos decisores públicos quanto ao apoio à distribuição de imprensa”, lamentando que essa decisão “continue por concretizar-se”.
Para perceber melhor o assunto, é preciso recuar até novembro de 2024, quando foi divulgado o Plano de Ação para a Comunicação, por parte do Governo. As medidas anunciadas têm como objetivo ajudar o setor da comunicação social a enfrentar uma série de desafios.
Entre eles, estava previsto um apoio de 3,5 milhões de euros à distribuição de jornais em zonas de baixa densidade e o lançamento de um concurso público no primeiro trimestre deste ano. O procedimento, contudo, não avançou.
O próprio presidente da Vasp, Marco Galinha, lamentou publicamente a morosidade e a falta de cumprimento dos prazos, tendo enviado uma carta conjunta com vários órgãos de comunicação ao Governo a pedir urgência na decisão.
O ministro da Presidência, António Leitão Amaro, afirmou, no final da reunião do Conselho de Ministros, que qualquer solução pública que ajude a assegurar a distribuição de imprensa no território nacional implicará sempre “mecanismos concorrenciais” e não passar cheques a uma empresa em concreto.
“Não há nenhum operador que possa tomar por garantido, ou ter da parte do Governo [alguma] garantia de que [o Estado] lhe vai dar [algum] subsídio dessa monta”, disse, sublinhando que “qualquer solução que envolva um esforço do dinheiro dos contribuintes por uma lógica de coesão territorial – e de acesso à tal comunicação social e imprensa livre, profissional e de qualidade – deve envolver sempre mecanismos concorrenciais”.
Leitão Amaro, que tutela a pasta da comunicação social, garante que o Governo tem uma “preocupação com a coesão territorial e o acesso, em todo o território, a comunicação social de qualidade, produzida profissionalmente e livre”. No entanto, ressalvou que não quer “criar nenhum instrumento de dependência” que envolva o dinheiro dos contribuintes direcionado para uma empresa em específico. “Não quero passar cheques a nenhuma empresa em concreto”, disse, numa referência indireta à Vasp.
“Uma grande machadada na democracia”
O presidente da Câmara da Guarda, Sérgio Costa, classifica a notícia como “uma grande machadada naquilo que é a democracia no nosso país”.
“Após 50 anos do 25 de Abril, ouvirmos falar na possibilidade da comunicação social não chegar ao Interior é muito mau para a democracia e a população”, declarou o autarca, que apela ao Governo que “encontre rapidamente uma forma de debelar o problema”, avisando que “hoje é a comunicação social”, mas “amanhã perdem-se mais direitos”. “Não pode ser. Somos um país cada vez mais a duas velocidades”, acrescenta.
O presidente da Câmara de Vila Real, Alexandre Favaios, juntou-se às críticas, manifestando “profunda preocupação”. “Esta decisão põe em causa o direito à informação e agrava desigualdades que há muito combatemos. Não podemos permitir que o Interior seja novamente colocado em situação de desvantagem estrutural”, afirma.
O autarca apela ainda a que “o Estado assuma as suas responsabilidades”, reforçando que “Vila Real e todo o Interior não podem ser esquecidos". “A distribuição de imprensa é um serviço básico numa sociedade democrática e não pode depender de critérios meramente económicos”, refere o autarca.
Quem também faz um apelo ao Governo, é o presidente da Câmara de Évora, Carlos Zorrinho: “É muito importante que as distribuidoras e o Governo encontrem uma solução para que a distribuição se mantenha”. “O acesso plural à comunicação social é fundamental para o desenvolvimento da cidadania”, acrescenta.
Isabel Ferreira, que preside a autarquia de Bragança, é "obrigação do Estado subsidiar os territórios para garantir a coesão territorial”.
Nuno Ferro, autarca de Beja, vai mais além do problema: "Temos zonas que não têm acesso a Internet e uma faixa significativa da população que não tem acesso às novas tecnologias". O edil afirma também que o Estado "tem de assegurar igualdade à informação" e "gostava que isto fosse um não assunto".
Casos já resolvidos podem voltar a fechar
As soluções chegaram a ser encontradas para concelhos como Vimioso, Freixo de Espada à Cinta, Marvão e Alcoutim. Estes locais foram abrangidos por um protocolo assinado entre o Governo e a Vasp e viram a distribuição de jornais restabelecida no ano passado.
Agora, permanece a incógnita se a realidade se manterá. O presidente da Câmara de Alcoutim, Paulo Paulino, recorda que o concelho esteve “um ano sem cobertura” e que, ao abrigo do protocolo, foi possível regressar à distribuição, mas com encargos suportados pelo município. A autarquia compra três diários e um semanário que são vendidos na biblioteca.
O concurso público anunciado em 2024 e destinado a assegurar a distribuição de jornais em todo o território, continua por concretizar. O objetivo é colmatar falhas estruturais no Interior que, segundo a VASP, se podem agravar de forma drástica já no início de 2026.
O Conta Lá contactou a Vasp, que também ainda não prestou qualquer esclarecimento até ao momento.
(Notícia atualizada às 18:18)