“O céu não é o limite”: o fisiologista português que ultrapassa fronteiras e prepara astronautas

O português Emiliano Ventura, especialista em fisiologia e reabilitação, prepara-se para dar um passo histórico: será o primeiro elemento a integrar um projeto piloto de treino de astronautas da Axiom, a empresa norte-americana que lidera os voos espaciais comerciais e que está a construir a próxima Estação Espacial Internacional.
Regina Nunes
Regina Nunes Jornalista
05 dez. 2025, 06:00

Fotografia de Emiliano Ventura à frente de dois ecrãs onde estão imagens espaciais
Fotografia: Emiliano Ventura é o fisioloista português que treina nomes de astronautas de relevo
Começou no desporto de alto rendimento, passou pelas pistas de atletismo, depois pelos circuitos automóveis e unidades militares. Hoje, o fisiologista Emiliano Ventura dirige um centro de alta performance em Madrid e trabalha diariamente com astronautas, numa sintonia entre a ciência, a performance e a preparação operacional. 

Em entrevista ao Conta Lá, Emiliano Ventura fala do percurso que o levou à fisiologia humana, ao mesmo tempo que conta como Portugal está a avançar na investigação espacial. Ao longo da conversa, revelou ainda os bastidores físicos, mentais e logísticos de quem faz da sua profissão um desafio aos próprios limites. 

Entre equipamentos de biomecânica e simuladores de forças extremas, o investigador começa por dizer que o seu interesse pela fisiologia nasceu muito antes do contacto com a área espacial: “O meu interesse pela performance humana foi sempre muito alto, desde que me conheço”, afirma. “Fui atleta, fui treinador, depois fisiologista. Sempre quis perceber como é que o corpo e a mente conseguem responder a ambientes extremos”, explica. A formação em Ciências do Desporto e a especialização em Fisiologia foram apenas os primeiros passos de uma carreira à procura dos limites humanos.

Hoje, esse conhecimento pela performance humana levou Emiliano Ventura para caminhos cada vez mais desafiantes. O seu percurso começou “no chão das pistas”: treinou ao lado do atleta Francis Obikwelu e trabalhou com o piloto Tiago Monteiro. Do atletismo ao automobilismo, passando pelas forças especiais, militares e, até recentemente, exploradores dos Polos Norte e Sul, a sua carreira foi sempre orientada pela mesma questão: até onde vai o corpo humano? “A performance humana é transversal. O corpo adapta-se a tudo, desde que seja treinado para isso”, afirma.

Atualmente aplica esse princípio aos astronautas das maiores agências do mundo. Segundo explica, apesar de os corpos serem os mesmos, os ambientes determinam exigências completamente distintas: “No fundo, o corpo humano é o mesmo, seja num atleta olímpico, num piloto de alta velocidade ou num astronauta em microgravidade. A questão está em como adaptamos esse corpo a ambientes diferentes”, explica. 
 

Desde 2017, o fisiologista acompanha as missões da Axiom Space, empresa norte-americana que lidera os voos espaciais comerciais e que está a construir a próxima Estação Espacial Internacional, e explica que a preparação de um astronauta assenta, sobretudo, em três componentes:

“A microgravidade tem efeitos no sistema vestibular e cardiovascular, nos ossos, nos músculos, no sistema imunitário, na nutrição, no próprio comportamento. Tudo muda. Por isso, treinar um astronauta envolve três pilares: adaptação à microgravidade; preparação para situações de emergência como situações de incêndio, resgates, extrações subaquáticas, sobrevivência na selva; e os treinos para as experiências científicas que vão realizar a bordo”, explica Emiliano Ventura. 

Os bastidores de um astronauta exigem uma preparação extrema, uma vez que vivem num ambiente de desconforto inerente ao contexto, como por exemplo, o isolamento. Nesta preparação, é feita uma quarentena, isto é, “ficam 15 dias isolados antes de voarem, para garantir que não transportam nenhum problema, nenhuma bactéria ou nenhum vírus para a estação espacial”. E o grau de exigência é total: “a capacidade de atuar em ambientes extremos tem de ser brilhante. Um erro no espaço pode ter consequências devastadoras”, acrescenta.

Quando questionado sobre se o maior desafio no treino de astronautas é o corpo ou a mente, a resposta é clara: “Ambos. Mas estes indivíduos já são excecionais. São verdadeiros “outliers” (indivíduos que se destacam no seu desempenho, em competências ou na criatividade). Têm uma capacidade cognitiva e uma precisão de execução muito acima da média, o que exige uma preparação muito especializada”. 

O reconhecimento do seu trabalho levou à escolha de Emiliano Ventura para o Project Astronaut, um programa piloto de treino de astronautas da Axiom Space, que o eleva à condição de primeiro astronauta formado pela empresa, com um protocolo de preparação de seis meses que compõe simulações de microgravidade, centrifugação, treinos de fuga e operações com fatos espaciais. “É algo de muito orgulho. A Axiom Space está a criar um corpo de astronautas próprio, e o facto de me terem escolhido como piloto para esse corpo de astronautas, para preparar e adaptar os futuros protocolos, é uma honra”, reitera.

Além disso, para esta operação, treina com três dos astronautas mais influentes: Peggy Whitson, Koichi Wakata e Michael Lopez-Alegria. O fisiologista pretende usar a sua experiência para estudar como o corpo humano se adapta ao espaço e contribuir para o avanço da investigação académica e espacial.

A convivência com atletas olímpicos, militares e astronautas reforçou a sua convicção: a ciência, por si só, não chega. “Os livros ensinam a base, mas trabalhar com estes indivíduos revela capacidades que não existem na população comum. Só estando no terreno é possível compreender até onde o corpo pode ir”.

Em virtude deste facto, alguns dos astronautas que Emiliano acompanha continuam a demonstrar capacidades físicas e cognitivas muito acima do que seria esperado em idades avançadas, mesmo em cenários de esforço extremo. Um dos exemplos é o de Peggy Whitson, de 65 anos, que é capaz de suportar forças de 6, 7 ou 8 G, o equivalente a ter várias vezes o seu próprio peso sobre o corpo. Nessas circunstâncias, o sangue “desce do cérebro”, o que provoca uma perda de cores, uma redução progressiva da visão e, em casos extremos, um estado de desmaio em que o organismo deixa de receber o oxigénio suficiente para manter as funções cognitivas funcionais.

Entre episódios que marcaram a carreira do fisiologista está a primeira missão privada à Estação Espacial Internacional, comandada por Michael López-Alegria. “O Michael estava reformado e veio para o nosso centro em Madrid para fazer uma cirurgia que lhe devolvesse a funcionalidade necessária para voltar a entrar num fato de astronauta. Assumimos o risco. Foi um passo enorme para apoiar missões internacionais”, relata. 

Outra missão que recorda foi a que registou a quarentena mais longa da história dos voos espaciais, apenas superada pela quarentena do Apollo 11 no regresso da Lua. O trabalho da equipa mereceu o reconhecimento da NASA e de outras agências pela capacidade de manter os astronautas operacionais durante semanas de isolamento.
 

Ao longo do seu trajeto, Emiliano Ventura acompanhou ainda o primeiro astronauta da Turquia e a primeira astronauta da Arábia Saudita.

Um dos avanços científicos alcançados pela equipa que lidera foi a redução significativa do tempo de recuperação dos astronautas após regressarem do espaço, em particular em missões de curta duração. “Conseguimos reduzir cerca de 10% do tempo de recuperação anterior”, afirma. 

Entre os próximos desafios estão a sua preparação para o projeto piloto de treino de astronautas e a preparação de uma exploradora que vai percorrer mil quilómetros sozinha na Antártida, acompanhada por um robot. 

“O céu não é o limite, o verdadeiro limite está dentro de nós.” A frase é deixada pelo fisiologista como uma mensagem aos mais jovens que ambicionam seguir a mesma carreira: “Acreditem. Trabalhem. Tenham disciplina. Nada se consegue sem esforço. Vai ser sempre necessário o input humano, a criatividade humana. Apesar de todas as inovações que existem como a Inteligência Artificial, o futuro não vai ser mais fácil, vai exigir mais de nós”, acrescenta.