Um comboio a duas velocidades: litoral ganha TGV, interior ainda espera por investimentos

O novo projeto da Alta Velocidade pretende encurtar distâncias no litoral. Mas no interior do país, o comboio, quando existe, circula em linhas centenárias, com troços encerrados ou infraestruturas degradadas. 
 
João Nogueira
João Nogueira Jornalista
04 dez. 2025, 01:00

Comboio de Alta Velocidade a passar numa área rural
Fotografia: A nova linha de Alta Velocidade pretende ligar o Porto e Lisboa em 1h15 e vai avançar por fases

O litoral do país deverá ter um novo modo de transporte na próxima década, com o TVG. Mas, enquanto isso acontece, o Interior Norte e Centro continuam a aguardar por projetos que há décadas se prometem e que raramente saem do papel. São territórios onde o comboio, quando existe, circula em linhas centenárias, com troços encerrados ou infraestruturas degradadas. Em muitos concelhos, as populações vivem sem alternativas ferroviárias, dependentes do automóvel ou de operadoras privadas de transporte rodoviário.

A Linha do Douro é um exemplo recorrente. Termina no Pocinho, apesar de existir há anos o desejo, mesmo com planos estudados, de reabrir o troço até Barca d’Alva, junto à fronteira com Espanha. O caminho de ferro de 28 quilómetros existe, mas está desativado desde 1988.

Menção também para a Linha do Vouga, que atravessa concelhos entre Espinho e Aveiro, e tem sido caso de avanços e recuos, com serviços suspensos e promessas de reabilitação ainda por concretizar.

O país avança a duas velocidades diferentes aos olhos dos presidentes das autarquias de Bragança e da Guarda.

A primeira, Isabel Ferreira, reconhece a importância dos investimentos ferroviários como a Alta Velocidade. Mas, por outro lado, não hesita em sublinhar que “a ferrovia em Bragança não existe”. O concelho não tem comboio desde 1991 e não há promessas de que volte a ter.

“Da mesma forma que é importante o TGV, é importante que a ferrovia volte a chegar a Bragança”, afirma ao Conta Lá Isabel Ferreira, reconhecendo os vários investimentos na rede rodoviária e também um Plano Nacional Ferroviário “desconectado”. “É uma linha e um investimento importante para o desenvolvimento do concelho e do Interior”, acrescenta.

A Linha da Beira Alta, que passa pela Guarda, reabriu na sua totalidade no final de setembro, após obras de modernização. Mas Sérgio Costa, presidente da Câmara da Guarda, lembra que o serviço  “ainda não está a funcionar com a capacidade e fiabilidade que foram prometidas”, salientando que os atrasos e constrangimentos continuam a “penalizar empresas e exportações”.

Foto: A modernização compreendeu cerca de 190 quilómetros de via-férrea

“Litoralização” dos investimentos públicos

A discussão sobre os projetos do TGV está longe de ser apenas técnica. É também, para os autarcas, uma questão de equidade territorial e de futuro demográfico. Num país que enfrenta despovoamento e envelhecimento nas regiões do Interior, a ausência de transportes públicos modernos e regulares é vista pelos responsáveis políticos como fatora de isolamento de comunidades e dificuldade em atrair investimento e população.

Para alguns municípios, os investimentos no TGV reforçam, assim, uma tendência: a “litoralização” das políticas públicas.

O presidente da Câmara da Guarda, Sérgio Costa, destaca que o atual desenho do projeto de Alta Velocidade “reforça a centralização dos grandes investimentos públicos no litoral” e volta a empurrar o Interior para “uma segunda fase que o país tem adiado durante décadas”.

Sérgio Costa sublinha que “a coesão territorial não se proclama, pratica-se.” Para o autarca, o atual desenho do projeto de Alta Velocidade “reforça a centralização dos grandes investimentos públicos no litoral” e volta a empurrar regiões para “uma segunda fase que o país tem adiado durante décadas”.

Recordando que a Guarda acolheu a Declaração Regional Conjunta assinada por 77 municípios portugueses e espanhóis, o autarca reforçou a posição comum assumida em abril deste ano: a necessidade inequívoca da ligação Aveiro–Viseu–Guarda–Vilar Formoso–Salamanca.

“Este eixo não é um capricho regional. É a ligação natural entre os portos portugueses e o centro económico de Espanha, é a porta ferroviária para a Europa e é a solução que mais contribui para a competitividade nacional”, afirma.

Também Isabel Ferreira sublinha a importância de Bragança como um território “transfronteiriço” com Espanha, um elemento que devia ser ainda mais aproveitado. “Tenho esperança que o caminho seja nesse sentido”, refere a presidente.

Foto: Tanto Guarda como Bragança apelam por mais estratégias dada a localização fronteiriça

“TGV não é exequível no Interior”

Mas nem tudo são decisões políticas e há questões técnicas que explicam os motivos para que o desenho da Alta Velocidade não passe pelo Interior e, ainda assim, “todos fiquem a ganhar”.

Apesar das críticas sobre um Interior cada vez mais distante, Álvaro Oliveira Costa, professor na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, rejeita que a Alta Velocidade vá aprofundar desigualdades. “A questão é que todos ficam a ganhar”, porque o país beneficia quando os principais centros aumentam a sua competitividade. Por isso, defende, “as áreas rurais devem pedir outras coisas, que não isto”.

Segundo o especialista, a localização da linha não resulta de uma decisão política contra o interior, mas de limitações técnicas e económicas. “O TGV não é exequível no Interior. O TGV é para ligar as grandes metrópoles”, explica, lembrando que estas ligações só fazem sentido entre cidades a cerca de uma hora e com procura suficiente, como mostrou o caso espanhol, em que as cidades médias e vizinhas dos grandes centros “desenvolveram-se”.

O docente dá mesmo o exemplo de Leiria, que acredita que “vai ganhar competitividade”, graças aos efeitos indiretos de atração de pessoas e empresas. O problema do Interior, sublinha, não é a dificuldade da obra, mas a falta de população: “O Interior não tem massa crítica para justificar a procura”.


Taxação do carro devia ser territorial

Perante isto, Álvaro Costa defende que o debate está no ponto errado. O verdadeiro entrave é o custo da mobilidade automóvel. “Há um problema estrutural na taxação da gasolina”, afirma, lembrando que nas regiões de baixa densidade, o carro é o meio mais eficiente, mas demasiado caro. A solução, diz, passaria por taxação diferenciada: “O que o Interior tem de exigir é que a taxação seja territorial”, como acontece no Norte da Europa, acrescenta.

A lógica seria simples: nas cidades deve haver custos e restrições ao automóvel, como portagens nas estradas de acesso aos centros urbanos; no Interior, onde não há alternativas, o oposto. Caso contrário, avisa o docente, o Interior continuará a perder competitividade porque “não há um modelo de mobilidade que permita custos baixos”.

Já zonas mais isoladas, como o Nordeste Transmontano, não terão ganhos imediatos. “Nesta fase não”, admite, reforçando que a prioridade nacional é “fazer o Porto–Lisboa e ligar a Espanha”; só depois se ponderam outras expansões.

O TGV entre Lisboa e Porto deverá ser uma realidade até ao final da próxima década. Mas, até lá, permanece a dúvida entre os municípios se o desenvolvimento ferroviário do país seguirá duas velocidades: uma no litoral, cada vez mais rápida e moderna; outra no Interior, cada vez mais distante em carris históricos.

Foto: Projeto também prevê ligar novamente as margens de Porto e Gaia com uma ou duas travessias