A apanha da azeitona “à moda antiga”, uma tradição milenar que resiste ao tempo
Entre os meses de outubro e novembro, pequenos produtores, por todo o país, replicam a apanha da azeitona à moda antiga, num processo que preserva as técnicas e os saberes das gerações anteriores.
26 nov. 2025, 14:00
Fotografia: A apanha da azeitona ainda se continua a fazer à moda antiga, num trabalho onde as mãos, com a ajuda de varas e ganchos, são o principal instrumento de trabalho
“Esta azeitona é uma azeitona de qualidade e o azeite sai puro, não é como aquele que se compra hoje nos supermercados. Isto sai-nos do corpo, mas no final sabemos o que comemos, temos um azeite topo de gama.”
A certeza nas palavras é a de quem ainda hoje mantém viva uma arte ancestral. Há mais de 60 anos que a chegada do tempo frio é para Domingos Matias sinónimo de começar a preparar a apanha da azeitona.
“Ainda andava na escola primária, devia ter uns cinco ou seis anos, quando comecei a apanhar a azeitona com os meus pais. Mas não gostava, era obrigado. Na altura, queria era brincar pelo campo com os meus irmãos. Depois apanhei o gosto, habituei-me a fazer o trabalho de campo e hoje é a coisa que mais gosto de fazer”, confessa Domingos em conversa com o Conta Lá, enquanto se prepara para estender o pano ao redor da primeira oliveira do dia.

Estamos no lugar de Valhascos, concelho de Sardoal, a pouco mais de 20 quilómetros do marco geodésico que assinala o centro do país. Passam poucos minutos das sete da manhã e o céu carregado de nuvens anuncia um dia de campanha molhado. Os botins e as capas para a chuva estão a postos, mas à espera de não serem necessários.
Domingos é dono de um terreno com cerca de meia centena de oliveiras e, todos os anos, junta os amigos e vizinhos para apanhar uma média de 500 quilos de azeitona por dia “se o tempo estiver bom”. “Os últimos anos têm sido na média dos 400 litros de azeite, e dispenso depois algum para amigos”, diz Domingos.
A conta-gotas, o grupo começa a formar-se: “Vamos lá para mais um dia de labuta”, anuncia José Gomes, um dos amigos que veio ajudar na campanha.
Enquanto espera que Domingos acabe de cortar os ramos com a ajuda de um escadote e uma motosserra – uma vez que a serra manual não é suficiente para chegar aos troncos mais teimosos – lembra o tempo em que tudo era mais difícil. “Antigamente, chegava-se a pôr 45 panos de linho, de 3x3, por baixo de uma oliveira para ela não cair no chão. Isto, há 40 anos”, recorda.

Hoje, os panos são de nylon, um material mais resistente e durável, e bastam dois ou três para apanhar toda a extensão da oliveira, mas os instrumentos continuam a ser os mesmos de antigamente. É com a força do corpo e a ajuda de uma vara, feita de madeira de eucalipto, ou de um ancinho ainda feito em ferro, que se ripam os ramos da oliveira. Uma operação que exige força de braços, mas também minúcia para não deixar escapar nenhuma azeitona.
“É preciso atenção, senão ficam sempre azeitonas perdidas pela terra. Elas saltam e vai uma grande parte fora”, explica-nos Madalena, esposa de Domingos. É a única mulher num grupo de cinco pessoas, mas não se deixa intimidar e assume, de igual modo, a dureza do ofício.
“Isto é chato, passamos o dia sempre em pé, mas se depois queremos comer bom azeite também temos de fazer algum sacrifício, não é?”, desabafa, com um sorriso que esconde o cansaço acumulado de longos dias de uma campanha, que pode durar várias semanas.
O esforço acrescido resulta de uma jornada que é ainda feita de forma rudimentar, contrariando os novos métodos resultantes da evolução do setor. Com o avanço da tecnologia, existem atualmente máquinas como os varejadores elétricos ou as colheitadeiras, que facilitam a apanha da azeitona. Enquanto os primeiros são compostos por cabos extensíveis com ganchos que permitem alcançar os ramos e, através de vibrações, limpar a azeitona diretamente para o pano, as colheitadeiras, por sua vez, são máquinas mais robustas e totalmente automatizadas, utilizadas em olivais (super) intensivos e de grande produção, que se agarram o pé da oliveira e a abraçam com uma espécie de leque, agitando a árvore e colhendo as azeitonas em segundos.
No entanto, estes equipamentos são dispendiosos para os pequenos produtores e, muitas vezes, inadequados para os socalcos e para as irregularidades do terreno, sendo ainda relatado o impacto que podem vir a ter na preservação de oliveiras com mais idade.
“Nem compensa comprar máquinas, a quantidade que tenho é pouca e para isso não vale a pena investir em máquinas que custam milhares de euros. Só iria ter prejuízo”, sublinha Domingos.

Por outro lado, na mecanização do processo da apanha deixa de existir “o convívio, as partilhas e o gosto de sermos nós a produzir o nosso azeite, de sabermos o que metemos no prato”, explica Madalena.
Qualquer que seja o método utilizado para apanhar o fruto da oliveira, o pequeno produtor revela que para uma boa campanha é essencial, primeiro, ter uma boa azeitona.
“As oliveiras que andamos a apanhar são de azeitona galega, a mais antiga que há, a que dá melhor qualidade de azeite, diferente destes olivais modernos.”

A meio da manhã, a chuva começa a cair, ainda que de forma tímida. Há quem tente resistir e acelere as ripadas nos ramos para despachar serviço antes que a água venha com mais força, mas há também quem aproveite a oportunidade para fazer uma pausa e “ir ver da bucha”. É um dos momentos mais desejados do dia: o de aconchegar o estômago.
“Preparo a bucha de véspera, não podemos perder tempo a ir almoçar a casa, então traz-se uns enchidos, pão, e muita água. Também não se pode comer muito que a gente para conseguir trabalhar não pode ter a barriga muito cheia”, explica Madalena, enquanto se sente o cheiro de chouriço assado.
“Todos para a mesa, sentem-se e comam”, chama Domingos. Em cima da mesa não falta nada: do pão caseiro aos enchidos, do queijo ao presunto, sem esquecer o café e a água-pé a estrear, resultado da vindima feita em setembro.

Enquanto se recarregam forças, aproveita-se também para meter a conversa em dia com mais vagar. Entre brincadeiras e desabafos, fazem-se contas à vida e lamenta-se que moer um quilo de azeitona no lagar já custe 18 cêntimos mais IVA.
O dia ainda vai a meio e não há tempo a perder. Tapa-se a comida até à próxima pausa e com o estômago já composto volta-se a ganhar ânimo para o resto da labuta. Enquanto uns varejam a azeitona, outros vão limpando o excesso de folhas, essencial para evitar a acidez excessiva do azeite.
Num trabalho que “não dá lucro, só prejuízo” e onde o caminho mais fácil seria “poupar tempo e ir comprar ao supermercado”, a verdadeira recompensa está “em saber que ficamos com um produto a que pouca gente tem acesso”.
“É muito melhor termos o trabalho, mas sabermos o que comemos do que ir ao supermercado e comprar uma garrafa de azeite cujo sabor não se compara”, esclarece Domingos.
As horas passam e o processo repete-se a cada novo estender de pano. A chuva vai dando tréguas, mas o sol começa a pôr-se, avisando que é hora de enrolar os panos, encostar as varas e encerrar o dia de trabalho.

Antes de ir, ensaca-se a azeitona apanhada, selam-se os sacos com fio de nylon e carregam-se para a carrinha, para no dia seguinte bem cedo os levar até ao lagar, onde começa a autêntica transformação do chamado ouro líquido.
A certeza nas palavras é a de quem ainda hoje mantém viva uma arte ancestral. Há mais de 60 anos que a chegada do tempo frio é para Domingos Matias sinónimo de começar a preparar a apanha da azeitona.
“Ainda andava na escola primária, devia ter uns cinco ou seis anos, quando comecei a apanhar a azeitona com os meus pais. Mas não gostava, era obrigado. Na altura, queria era brincar pelo campo com os meus irmãos. Depois apanhei o gosto, habituei-me a fazer o trabalho de campo e hoje é a coisa que mais gosto de fazer”, confessa Domingos em conversa com o Conta Lá, enquanto se prepara para estender o pano ao redor da primeira oliveira do dia.

Estamos no lugar de Valhascos, concelho de Sardoal, a pouco mais de 20 quilómetros do marco geodésico que assinala o centro do país. Passam poucos minutos das sete da manhã e o céu carregado de nuvens anuncia um dia de campanha molhado. Os botins e as capas para a chuva estão a postos, mas à espera de não serem necessários.
Domingos é dono de um terreno com cerca de meia centena de oliveiras e, todos os anos, junta os amigos e vizinhos para apanhar uma média de 500 quilos de azeitona por dia “se o tempo estiver bom”. “Os últimos anos têm sido na média dos 400 litros de azeite, e dispenso depois algum para amigos”, diz Domingos.
A conta-gotas, o grupo começa a formar-se: “Vamos lá para mais um dia de labuta”, anuncia José Gomes, um dos amigos que veio ajudar na campanha.
Enquanto espera que Domingos acabe de cortar os ramos com a ajuda de um escadote e uma motosserra – uma vez que a serra manual não é suficiente para chegar aos troncos mais teimosos – lembra o tempo em que tudo era mais difícil. “Antigamente, chegava-se a pôr 45 panos de linho, de 3x3, por baixo de uma oliveira para ela não cair no chão. Isto, há 40 anos”, recorda.

Hoje, os panos são de nylon, um material mais resistente e durável, e bastam dois ou três para apanhar toda a extensão da oliveira, mas os instrumentos continuam a ser os mesmos de antigamente. É com a força do corpo e a ajuda de uma vara, feita de madeira de eucalipto, ou de um ancinho ainda feito em ferro, que se ripam os ramos da oliveira. Uma operação que exige força de braços, mas também minúcia para não deixar escapar nenhuma azeitona.
“É preciso atenção, senão ficam sempre azeitonas perdidas pela terra. Elas saltam e vai uma grande parte fora”, explica-nos Madalena, esposa de Domingos. É a única mulher num grupo de cinco pessoas, mas não se deixa intimidar e assume, de igual modo, a dureza do ofício.
“Isto é chato, passamos o dia sempre em pé, mas se depois queremos comer bom azeite também temos de fazer algum sacrifício, não é?”, desabafa, com um sorriso que esconde o cansaço acumulado de longos dias de uma campanha, que pode durar várias semanas.
O esforço acrescido resulta de uma jornada que é ainda feita de forma rudimentar, contrariando os novos métodos resultantes da evolução do setor. Com o avanço da tecnologia, existem atualmente máquinas como os varejadores elétricos ou as colheitadeiras, que facilitam a apanha da azeitona. Enquanto os primeiros são compostos por cabos extensíveis com ganchos que permitem alcançar os ramos e, através de vibrações, limpar a azeitona diretamente para o pano, as colheitadeiras, por sua vez, são máquinas mais robustas e totalmente automatizadas, utilizadas em olivais (super) intensivos e de grande produção, que se agarram o pé da oliveira e a abraçam com uma espécie de leque, agitando a árvore e colhendo as azeitonas em segundos.
No entanto, estes equipamentos são dispendiosos para os pequenos produtores e, muitas vezes, inadequados para os socalcos e para as irregularidades do terreno, sendo ainda relatado o impacto que podem vir a ter na preservação de oliveiras com mais idade.
“Nem compensa comprar máquinas, a quantidade que tenho é pouca e para isso não vale a pena investir em máquinas que custam milhares de euros. Só iria ter prejuízo”, sublinha Domingos.

Por outro lado, na mecanização do processo da apanha deixa de existir “o convívio, as partilhas e o gosto de sermos nós a produzir o nosso azeite, de sabermos o que metemos no prato”, explica Madalena.
Qualquer que seja o método utilizado para apanhar o fruto da oliveira, o pequeno produtor revela que para uma boa campanha é essencial, primeiro, ter uma boa azeitona.
“As oliveiras que andamos a apanhar são de azeitona galega, a mais antiga que há, a que dá melhor qualidade de azeite, diferente destes olivais modernos.”

A meio da manhã, a chuva começa a cair, ainda que de forma tímida. Há quem tente resistir e acelere as ripadas nos ramos para despachar serviço antes que a água venha com mais força, mas há também quem aproveite a oportunidade para fazer uma pausa e “ir ver da bucha”. É um dos momentos mais desejados do dia: o de aconchegar o estômago.
“Preparo a bucha de véspera, não podemos perder tempo a ir almoçar a casa, então traz-se uns enchidos, pão, e muita água. Também não se pode comer muito que a gente para conseguir trabalhar não pode ter a barriga muito cheia”, explica Madalena, enquanto se sente o cheiro de chouriço assado.
“Todos para a mesa, sentem-se e comam”, chama Domingos. Em cima da mesa não falta nada: do pão caseiro aos enchidos, do queijo ao presunto, sem esquecer o café e a água-pé a estrear, resultado da vindima feita em setembro.

Enquanto se recarregam forças, aproveita-se também para meter a conversa em dia com mais vagar. Entre brincadeiras e desabafos, fazem-se contas à vida e lamenta-se que moer um quilo de azeitona no lagar já custe 18 cêntimos mais IVA.
O dia ainda vai a meio e não há tempo a perder. Tapa-se a comida até à próxima pausa e com o estômago já composto volta-se a ganhar ânimo para o resto da labuta. Enquanto uns varejam a azeitona, outros vão limpando o excesso de folhas, essencial para evitar a acidez excessiva do azeite.
Num trabalho que “não dá lucro, só prejuízo” e onde o caminho mais fácil seria “poupar tempo e ir comprar ao supermercado”, a verdadeira recompensa está “em saber que ficamos com um produto a que pouca gente tem acesso”.
“É muito melhor termos o trabalho, mas sabermos o que comemos do que ir ao supermercado e comprar uma garrafa de azeite cujo sabor não se compara”, esclarece Domingos.
As horas passam e o processo repete-se a cada novo estender de pano. A chuva vai dando tréguas, mas o sol começa a pôr-se, avisando que é hora de enrolar os panos, encostar as varas e encerrar o dia de trabalho.

Antes de ir, ensaca-se a azeitona apanhada, selam-se os sacos com fio de nylon e carregam-se para a carrinha, para no dia seguinte bem cedo os levar até ao lagar, onde começa a autêntica transformação do chamado ouro líquido.