Gastar para não falhar: o custo emocional do Natal

Os dados mais recentes mostram um aumento no gasto médio dos portugueses durante o Natal, mas também um crescimento da ansiedade financeira que acompanha a época. À medida que a pressão cultural para oferecer presentes se intensifica, surgem sinais de que o consumismo natalício está a afetar não só o orçamento, mas também a saúde mental.
Mariana Moniz
Mariana Moniz Jornalista
07 dez. 2025, 06:00

Consumismo natalício
Fotografia: Consumismo natalício afeta a saúde mental | Imagem criada por IA

As luzes acendem-se cada vez mais cedo, mas para muitos portugueses o brilho do Natal esconde um peso que não se vê nas montras. Entre a inflação que não abranda e a tradição que insiste, chega dezembro e instala-se uma tensão silenciosa: o desejo de cumprir o ritual das prendas e o receio de não conseguir pagar as contas. 

O estudo mais recente do Instituto Português de Administração de Marketing (IPAM) confirma essa contradição: gastamos, em média, mais de 390 euros durante a quadra, ao mesmo tempo que quatro em cada dez portugueses admitem estar a cortar no orçamento e a reduzir o número de presentes. É uma tentativa frágil de manter viva a ideia de “um Natal como deve ser”, mesmo quando a carteira ou a saúde mental não acompanham.

Mas por detrás das estatísticas existem histórias individuais. Famílias que fazem contas à vida, jovens adultos que recorrem ao crédito para não falhar expectativas, pessoas que descrevem dezembro como “o mês mais pesado do ano”. Este é o retrato de um Natal onde o consumismo se cruza com a ansiedade, e onde cada compra é, muitas vezes, menos sobre desejo e mais sobre dever.

Ao Conta Lá, a psicóloga e presidente da Sociedade Portuguesa de Psicossomática, Patrícia Câmara, explica que, apesar da pressão social que existe para o consumismo, o Natal ainda é celebrado “a partir de um lugar que vem de dentro de cada um de nós”. Porém, parece que existe um “conjunto de bens materiais que são necessários para tornar esta época um momento verdadeiramente bom”. 

Patrícia Câmara ressalva que o facto de sentirmos que temos de ter uma quantidade de dinheiro suficiente para garantir que todas as pessoas a quem queremos dar um presente ficam satisfeitas pode causar uma ansiedade enorme. 

“Do ponto de vista psicossomático, isto também tem um grande impacto. A ansiedade, como sabemos, aumenta a produção de corticosteroides (substâncias inflamatórias) e lá ficamos nós outra vez numa corrida desenfreada para chegar a lugar nenhum”, explica.

“Penso que esta ideia de: ‘se tu não tiveres isto, não vais ser feliz, se tu não tiveres isto, não vais estar adaptado à sociedade, se tu não tiveres isto, estás a perder qualquer coisa’, é uma ideia profundamente perigosa e que realmente tem vindo a secar o Natal”, acrescenta.

Patrícia Câmara considera que o consumismo natalício é um comportamento cultural, mas também um mecanismo psicológico que traz uma certa compensação emocional. A psicóloga compara ainda este comportamento com a fome emocional.

“Do ponto de vista do consumo acontece a mesma coisa. As compras também preenchem um certo vazio. Porém, se se está numa situação de compensação e, na realidade, se está a tentar esconder esse tal vazio, uma carência interna muito grande ou até uma deceção para com as coisas, na verdade nunca vai ser suficiente. Acaba por ser uma coisa infinita”.

Sob a perspetiva cultural e até sociopolítica, Patrícia Câmara afirma que vivemos numa época em que nos é imposta a ideia de que temos de atingir um certo patamar que nunca está claro. “Só sabemos que é mais acima. Isto dá-nos a sensação de que podemos estar a perder o momento certo que nos permita chegar a esse patamar”. 

No Natal acontece a mesma coisa, principalmente durante a Black Friday. “De repente, temos de fazer umas compras enormes e rápidas, porque é muito mais barato e conseguiremos dar presentes de Natal verdadeiramente bons”. Isto torna as pessoas hipervigilantes, pois estamos a “jogar com o lugar da perda”. Esta ansiedade faz-nos “andar mais depressa pelo medo de estarmos a perder qualquer coisa”. 

“Se sinto que não tenho possibilidades financeiras para qualquer coisa que eu acho que é essencial, mas tenho esta oportunidade incrível, então tenho de correr ainda mais para atingir esta possibilidade que me está a ser facultada”, explica.

Mas na verdade, da perspetiva da saúde mental, toda esta euforia que parece estar associada a uma oportunidade irrecusável, também pode ser cruel, pois “as pessoas confrontam-se com as suas impossibilidades de uma maneira muito bruta”.

 

A obrigação de oferecer o presente perfeito

 

A pressão não vem só das contas. Vem também da ideia, quase imposta, de que cada prenda precisa de ser perfeita. Do presente “que diz tudo”, do gesto irrepreensível que prova cuidado, amor ou atenção. Muitos portugueses descrevem esta etapa como uma espécie de corrida silenciosa: procurar algo que esteja à altura das expectativas das crianças, da família, do grupo de amigos, mesmo quando o orçamento não acompanha. A obrigação de acertar no presente certo transforma o ato de oferecer numa tarefa pesada, onde o medo de desiludir fala mais alto do que o prazer da partilha.

Do ponto de vista sintomático, esta pressão reflete-se numa ansiedade muito grande: “Acho que nós nem damos conta, mas ficamos numa espécie de frenesim interno para fazer a tal corrida em busca do presente perfeito”.,

“Os pais vão a correr para os centros comerciais para conseguirem comprar aquela boneca, aquele brinquedo. Também há o lado bonito, claro. Vemos pessoas a tentarem criar condições para oferecer aos filhos qualquer coisa que sentem que os vai deixar felizes”, afirma.

Ainda assim, Patrícia Câmara considera importante pôr as próprias crianças a pensar. “Elas têm de perceber por que é que aquilo as vai deixar assim tão felizes. Até porque, muitas das vezes, aquele brinquedo acaba parado na prateleira do quarto. Às vezes, é apenas uma questão de ‘ter isto’ para se ficar de igual para igual”, afirma.

Mas que igualdade é esta? Falamos da identificação de grupo, que é importante para as crianças e, muitas vezes, significa ter as mesmas coisas. “Tudo isto opera um lugar. Mas quando um lugar é excessivo, convém questioná-lo para se perceber por que é que se está a correr para adquirir determinada coisa”. 

A psicóloga recorda-se de uma conversa que teve o ano passado com um senhor, que lhe admitiu ter ido a “três lojas diferentes do país” para conseguir comprar um presente. Com esta história, Patrícia Câmara reflete sobre os sintomas que a ansiedade financeira pode causar, indicando “a ausência da capacidade de pensar” como o pior de todos.

“Para mim, estes momentos que causam uma pressão social para consumir são verdadeiros ataques ao pensamento. Acabam por ser uma forma de violência sobre nós próprios”, sublinha.

E depois há a culpa que acompanha quem não consegue gastar o que gostaria. Para muitas pessoas, dezembro torna-se um exercício de comparação: entre o que a família espera, o que os outros oferecem e aquilo que realmente é possível pagar. O constrangimento de chegar ao limite do orçamento antes de chegar ao fim da lista instala-se devagar, como se o valor das prendas medisse o valor do próprio afeto. É uma culpa injusta, mas comum, que transforma a quadra num período de tensão interior para quem vive com contas apertadas ou rendimentos instáveis.

Mas afinal, como se trabalha a culpa que se sente quando não se consegue dar aquele presente? Para a psicóloga, é extremamente importante percebermos que o nosso valor não se mede pela capacidade financeira que temos. “Tudo aquilo que a pessoa faz no seu dia a dia não é, provavelmente, equiparável ao valor que recebe financeiramente. Por essa razão, tem todo o direito de se desculpabilizar e de perceber que aquilo que tem para oferecer na relação com os outros é um lugar de verdade relacional”.

 

Como ajudar a sociedade a repensar o Natal de forma mais equilibrada

 

Repensar o Natal não é abdicar da tradição, mas reenquadrá-la de forma mais equilibrada, longe da pressão de corresponder a expectativas irreais. A psicóloga alerta para a relevância da sensibilização e da prevenção que deve acontecer desde cedo, nas escolas, por exemplo.

“Devemos falar sobre a importância do gesto relacional e autêntico como o centro da construção da humanidade. Isso é que é Natal”, frisa.

Patrícia Câmara argumenta que a cultura contemporânea substitui, perigosamente, o valor da conexão relacional pelo valor monetário dos bens, levando as pessoas a uma corrida desenfreada em busca do “presente perfeito”. 

A psicológa defende que é fundamental resgatar o sentido intrínseco da época, focando na presença e no gesto autêntico de partilha ao invés de o fazer na acumulação de bens, o que confere maior saúde mental e significado.

No fim, talvez o desafio esteja em recuperar o essencial: um Natal menos feito de urgências e mais de presença, menos de contas e mais de encontros. As estatísticas ajudam a perceber o peso da quadra, mas são as escolhas individuais - pequenas, conscientes, possíveis - que podem aliviar o ciclo de pressão e ansiedade que dezembro tantas vezes carrega. Entre luzes, listas e expectativas, permanece a oportunidade de reinventar a época para que volte a ser aquilo que muitos procuram nela: um tempo de pausa e afeto num ano que, para quase todos, já pesa o suficiente.