Quando trabalhar não chega: o que explica a persistência da pobreza laboral no país do "pleno emprego"

No país do "pleno emprego", um em cada dez trabalhadores é pobre. O setor do turismo e da restauração, hipervalorizado nos últimos anos, é o mais crítico. 
João Nápoles
João Nápoles Editor-executivo
10 dez. 2025, 07:00

Pessoas a atravessar uma rua movimentada
Fotografia: 9% dos trabalhadores portugueses em risco de pobreza

O desemprego continua a ser um dos principais fatores de pobreza, mas ter um trabalho não garante o fim da carência. Em Portugal, 9,2% dos trabalhadores vivem em risco de pobreza, o 9.º valor mais alto na União Europeia. 

Os dados que o Eurostat compilou colocam a média comunitária em 8,2%, com o valor mais elevado a ser verificado no Luxemburgo (13,4%) e o número menos grave a registar-se na Finlândia, onde apenas 2,8% dos trabalhadores vivem em risco de pobreza.

É verdade que o valor em Portugal tem registado uma diminuição, "mas não linear e muito pouco expressiva", na visão do economista Carlos Farinha Rodrigues, que considera a pobreza laboral um dos principais problemas sociais do país. "O que estes números indicam é que ter emprego não é condição necessária e suficiente para deixar de ser pobre", explica.

E porque é que isto acontece? Para o professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) e investigador em distribuição de rendimentos, pobreza, desigualdade e avaliação de políticas públicas, "o funcionamento do mercado de trabalho é uma das principais justificações da pobreza em Portugal. Temos um mercado de trabalho que não valoriza significativamente quem trabalha e não permite escapar à situação de pobreza".

O paradoxo do turismo

Em Portugal, isso é particularmente visível no alojamento e restauração. É este o setor de atividade com a maior taxa de risco de pobreza, com 22,8% de trabalhadores em carência. Mais de um em cada cinco. 
Carina Castro, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do Norte, denuncia um contexto de "salários muito baixos. Há muita precariedade no setor e o custo de vida aumentou bastante. As pessoas não conseguem fazer face às despesas básicas. Por vezes são famílias com mais de um filho".

O que parece paradoxal é que este setor registou um crescimento exponencial nos últimos dez anos. Segundo o INE, entre 2014 e 2024, o número de dormidas em estabelecimentos hoteleiros cresceu 65%. Os proveitos totais, no entanto, tiveram um aumento ainda maior, na ordem dos 192%. No mesmo período, os salários subiram apenas pouco mais de 50%, valor que, descontando o efeito da inflação, cai para cerca de metade.

E nem sequer a clássica lógica de mercado (a de que o preço reflete a relação oferta/procura) se aplica à força de trabalho do setor. Esta é uma atividade que vive uma dificuldade estrutural de falta de mão de obra, que em 2022 o World Travel & Tourism Council cifrava em 50 mil trabalhadores.

Uma história de precariedade

Carlos Farinha Rodrigues explica que "o mercado de trabalho tem condicionantes diferentes do mercado de produto", sobretudo num contexto tão específico como o turismo. "Continuamos a ter condições de precariedade muito grandes nalguns setores do mercado de trabalho. Claro que este é um setor em que a sazonalidade é uma componente importante, o que facilita que esta precariedade se generalize. Esse é um fator potenciador de situações de pobreza", afirma o economista.

Os dados recolhidos pelo INE através do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR) mostram efetivamente que a precariedade é, para quem trabalha, um dos fatores que mais influencia a posição de carência. Em 2023, a taxa de pobreza das pessoas com contrato temporário era de 18,2%, mais do dobro da que atingia os trabalhadores com contratos de trabalho permanentes (7%).

O caso de Carina Castro é paradigmático. Trabalha nos bares da CP - que são concessionados a empresas externas, através de concursos públicos - há 24 anos. Neste período já prestou serviços a sete empresas diferentes e, recentemente, esteve três meses sem salário. "A CP não quer ficar com a gestão dos próprios bares. Acontece o mesmo com as cantinas escolares. As empresas públicas acabam por dar cobertura a estes baixos salários e à precariedade existente", refere a dirigente sindical.

O "problema da imigração"

A Rede Europeia Anti-Pobreza (EAPN) destaca também, no seu relatório deste ano, as disparidades da proveniência dos trabalhadores em risco de pobreza. Se 8,8% dos trabalhadores portugueses são afetados, "a taxa entre os estrangeiros ultrapassa os 18%, atingindo 20% nos trabalhadores extracomunitários, refletindo a maior vulnerabilidade deste grupo face à precariedade e baixos salários".

É essa a experiência de Carina Castro. "Os imigrantes têm receio. Sujeitam-se a condições terríveis e até a contratos ilegais. Visitamos frequentemente vários locais de trabalho para elucidar os trabalhadores imigrantes do setor. Eles não conhecem os direitos e têm muito medo de sofrer retaliação".

E o problema, alerta Carlos Farinha Rodrigues, pode ser maior. "Grande parte desses trabalhadores imigrantes, com trabalhos mais temporários, nem sequer aparecem nestas estatísticas. Estes dados resultam do inquérito que o INE faz anualmente às pessoas que vivem em habitações 'normais'. Ou seja, estes imigrantes que vivem em carrinhas, ou em condições de habitação 'informais', nem sequer são apanhados por estas estatísticas. Aí, de certeza que o número de trabalhadores pobres é muito maior do que aqueles que as estatísticas oficiais nos mostram".

O novo pacote laboral

O economista defende a regulação do mercado de trabalho como forma de mitigar o problema. "É preciso uma atuação a nível do mercado de trabalho que claramente aponte para isso. Nós só conseguimos ter uma sociedade com menos pobreza, com menos exclusão social, se também introduzirmos alterações profundas no mercado de trabalho, garantindo uma dignidade acrescida ao fator trabalho".

E o novo pacote laboral, que o Governo levou a discussão, "é pouco provável que vá nesse sentido", duvida Carlos Farinha Rodrigues. "Ainda não temos a visão clara de qual será a versão final do novo pacote, mas eu penso que a reforma que neste momento está em discussão dificilmente irá no caminho de reduzirmos mais efetivamente a taxa de pobreza laboral em Portugal".

Carina Castro vê nesta possível alteração legislativa "um ataque aos direitos dos trabalhadores portugueses e imigrantes, porque trava a contratação coletiva, facilita os despedimentos, restitui o banco de horas, diminui os direitos na parentalidade. Tudo isto é um ataque muito agressivo aos trabalhadores e que pode vir a agravar a nossa condição", afirma a dirigente sindical.